• Pronto. Chegou o dia dos balanços. O dia em que quase toda a gente é tomada por uma necessidade (por vezes masoquista) de rever o ano que está prestes a acabar. Há sempre uma série de arrependimentos, uma dose de autocomiseração e uma certa vaidade por eventuais conquistas.

    Há casamentos, nascimentos e promoções. Há divórcios, lutos e desemprego. Tudo isto misturado, tudo isto a acontecer com a mesma pessoa, com a mesma família ou comunidade. E depois, há ainda as já clássicas reportagens sobre o melhor e o pior do ano, que só nos fazem sentir mais insignificantes perante os grandiosos acontecimentos. Qual foi a minha contribuição para a Humanidade? Como posso queixar-me seja do que for perante as imagens da Síria? Como posso vangloriar-me de pequenos feitos perante tudo o que fez Mandela?

    Mas posso. Podemos todos. Porque somos humanos. Porque embora tenhamos a sorte de não ter nascido numa zona de guerra, também temos as nossas pequenas tragédias. Porque os nossos actos podem não mudar o mundo, mas mudam o mundo de alguém. Porque apesar de poucos ficarem na História, todos fazemos parte dela, com os nossos dias nada emocionantes, as nossas rotinas nada inspiradoras e os nossos desejos apenas mundanos. E se o melhor que fizemos no ano que acaba foi ajudar uma velhinha a atravessar a estrada, não nos sintamos menos dignos. Amanhã poderemos começar de novo. E depois de amanhã. E a qualquer momento da nossa vida.

    Álvaro de Campos escreveu que «O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.» Mas se não sonharmos, o que nos resta?

    Vamos então sonhar um 2014 como nos apetecer, em que sejamos heróis para quem nos é querido, geniais numa actividade qualquer (mesmo que seja a resolver palavras cruzadas) ou em que sejamos apenas nós próprios, com todas as nossas falhas. Para uns, serão sonhos altruístas como a paz no mundo, a saúde eterna e a cura do cancro. Para outros, um carro novo, um amante ou uma mala Chanel. Não importa a dimensão ou a futilidade dos mesmos, porque enquanto pudermos mandar nos nossos sonhos seremos livres. Mesmo nos dias mais escuros. Mesmo num país pequenino.

    ©Steve Simpson
  • Esta não é uma noite como as outras. Mais não seja por conter em si a esperança e as promessas de que vai ser especial. É tempo de perdão, de amor, de esquecer as diferenças. No entanto, todos os anos, década após década, observo as mesmas angústias, as mesmas mentiras, as mesmas histórias. Vejo os filhos repetirem os erros dos pais. Vejo os netos a rir com as mesmas brincadeiras que fizeram rir os seus avós. Só muda o tempo, esse que por mim passa tão devagar.


    Sete da tarde.

    O ar começa a cheirar a filhoses e lenha.

    A rapariga loura limpa as lágrimas e retoca a maquilhagem ao espelho do carro, enquanto o rapaz retira alguns sacos do porta-bagagens. Sem lhe dizer uma palavra, fica à espera que ela decida sair, pegue no bebé, que dorme no banco de trás, e o siga até à porta número sete. Não a via com uns olhos tão tristes desde que os seus cabelos estavam presos em tranças, os joelhos esfolados debaixo do vestido e o cão definitivamente imóvel no seu colo.

    À janela do quarto esquerdo, uma mulher espreita ansiosa entre as cortinas. Ainda faltam muitas horas, ela sabe. Mas não consegue evitar perder o olhar na rua, que agora já está escura, aguardando os faróis do Ford azul.

    No segundo andar da porta número nove, o homem continua no sofá. Já perdeu a conta à cerveja que a mulher lhe vai trazendo a cada grito. A cozinha envolta em vapor, porque o exaustor está avariado há três anos. E ainda tem de fazer as rabanadas.

    No quinto, está a família feliz. A árvore é a mais bonita, as crianças as mais bem comportadas, os presentes os mais valiosos. Os sorrisos espalham-se à medida que a família vai chegando. Quatro gerações.

    Um carro pára agora à minha frente, mas não é o Ford azul. Dois homens despedem-se com um beijo nos lábios. O condutor segue. O passageiro respira fundo e esconde a aliança no bolso do casaco, enquanto se dirige para casa dos pais, no prédio do lado.


    Nove da noite.

    Cai uma chuva miudinha que todos gostariam que fosse neve, menos eu, que ficaria com as folhas queimadas. Neve seria, contudo, muito mais romântico.
    A rapariga loura voltou a sorrir. O rapaz também, embora a raiva continue a jorrar dos seus olhos. O bebé passa de colo em colo, contagiando toda a gente com a sua inocência, como que a provar àqueles que eram contra a sua existência, o quão mágico é um pequeno ser. A encarnação da esperança. Todas as possibilidades pela frente.
    À janela do quarto esquerdo, a mulher volta a espreitar uma última vez antes de se sentar sozinha à mesa. Podia ter ido para a terra. É sempre a esta hora que se arrepende de não ter ido para a terra. Mas também, o que dizer àquela gente toda? Como suportar aquelas vidas provincianas, aquelas histórias sempre iguais, aquelas perguntas em tom de crítica?
    O homem continua a beber no segundo andar, embora tenha finalmente largado o sofá. Os filhos fingem que não se importam. Têm de sorrir pela mãe, que teve tanto trabalho. E ainda fez as rabanadas que sobram sempre, porque ninguém gosta de fritos.
    A família feliz está sorridente a partilhar uma luxuosa refeição. O pai das crianças não pára de mandar SMS por baixo da mesa. A mulher finge não perceber. É Natal. É suposto sorrir. A cunhada invejosa não tira os olhos da mulher do irmão, que está sempre tão bem vestida, tão bem arranjada, enquanto ela não tem dinheiro nem para ir fazer as mãos. A matriarca abre os olhos ao marido sempre que ele volta a encher o copo. «Não devias beber tanto. E depois quem é que leva o carro até à Igreja?» Os adolescentes jogam uns com os outros via telemóvel. A bisavó finge-se de surda e aproveita apenas o lado bom da coisa: ver a família toda reunida, quem sabe se pela última vez. Aproveita também para esconder mais uns figos secos no bolso do casaco, que saboreará quando ninguém estiver a ver.
    Na casa ao lado, o homem continua a gabar-se das suas viagens fantásticas e a inventar histórias da namorada parisiense que se está a tornar um caso sério. Talvez para o ano, se tudo correr bem, a convença a vir a Portugal. Os olhos da mãe brilham de alegria. Queria tanto ter um netinho.


    Meia noite.

    A hora mágica.
    A rapariga loura finge gostar do presente que o rapaz lhe deu. Não quer deitar-se zangada mais uma vez. Ele, no fundo, é bom rapaz. A sério que é.
    A mulher do quarto esquerdo dormita no sofá, enquanto as velas derretem no candelabro.
    No segundo andar, o homem já foi a cambalear até ao quarto, ignorando a abertura dos presentes. A mulher contém as lágrimas. Nem tudo é assim tão mau. Tem os filhos e os netos. Tem de continuar por eles. Amanhã logo se vê.
    A família feliz foi quase toda à Missa do Galo. Menos os adolescentes, que ficaram a tomar conta dos primos mais novos. Fumam charros à janela enquanto as crianças pulam no sofá, ansiosas pelos presentes e excitadas pelo excesso de açúcar.
    O homem do prédio ao lado distribui embrulhos caros que trouxe das suas viagens exóticas. Mas a mãe só queria um netinho. Ai que ainda vai morrer sem ter um netinho.


    Madrugada.

    Cai a neblina.
    A rapariga loura pede desculpa ao rapaz assim que entram no carro. Vamos começar de novo. Vamos ter outro bebé. Um bebé resolve tudo, com a sua doçura. Prometo que tudo vai ser diferente.
    O Ford Azul chega finalmente. A mulher dá pulinhos à janela. Sabe que não tem muito tempo. Ele disse à outra que ia só dar uma volta para esmoer o jantar. Mas aquela hora chega-lhe. A hora em que finge que são um casal. A hora em que finge ter uma família. Recebe mais uma jóia, quando só queria um pouco mais de amor. Mas não faz mal. Uma hora chega para sonhar.
    No segundo andar da porta número nove, a mulher limpa a casa em silêncio. Não pode acordar o marido, senão já sabe o que lhe acontece. Limpa a casa como se limpasse as tristezas da sua vida. São muitas e estão incrustadas como a gordura no exaustor que não funciona há três anos. Engole as lágrimas e as imagens do que poderia ter sido. Haja saúde. O resto a gente aguenta.
    A família feliz despede-se. Amanhã o cinismo continuará. Agora, cada elemento recolhe, maldizendo os outros durante o caminho até casa. Menos os adolescentes que dormem mais profundamente que as crianças. Uns anjinhos.
    O homem do prédio ao lado chama um táxi. Está desejoso de chegar a casa e rir com o companheiro das mentiras que tiveram de contar às respectivas famílias. Riem para disfarçar o desgosto de não poderem passar aquela noite juntos. Talvez para o ano seja diferente. Talvez para o ano tenham coragem.
    Uma a uma as luzes apagam-se e os motores dos carros deixam de se ouvir. Passou mais uma noite de Natal. Nenhum milagre trouxe a felicidade instantânea ou a resolução de todos os problemas sobre os quais ninguém quer falar. Daqui a umas horas tudo será como antes. Como sempre.
    Aguardo que os primeiros raios de sol aqueçam os meus ramos. Parece que já não vai chover.





    (texto originalmente publicado neste blog em 2011)
  • Só as tragédias nos relembram o verdadeiro valor da nossa existência. Só as tragédias nos trazem a angústia de sermos mortais. Passamos a vida tão ao de leve, tão preocupados com coisas mundanas, com as contas, com os horários, com o que os outros pensam, com o que é que se tira para o jantar, com aquele berbicacho que temos de resolver até ao dia seguinte, que nos esquecemos do que realmente importa. De quem realmente importa.
    Só as tragédias nos espicaçam durante uns dias. Nesse período, prometemos a nós próprios que vamos ser pessoas melhores, que vamos preocupar-nos mais com os outros, que vamos telefonar mais vezes aos pais, aos avós, aos amigos, que vamos cumprir aquela promessa há tanto tempo adiada. Prometemos tudo isto, para logo a seguir sermos novamente engolidos pelo quotidiano e atirados a um mundo que não está feito para contemplações. Um mundo que não nos dá tempo para pensar, que não nos dá tempo para tudo o que um dia gostaríamos de fazer ou dizer. E, quando mais de 90% da população luta para sobreviver, é quase um insulto pedir que sejamos mais contemplativos e olhemos para as pequenas coisas poéticas que a vida nos oferece. A poesia não paga as contas, não cumpre os horários, não faz o jantar.
    Mas então acontece uma tragédia. Um acidente, uma doença, uma injustiça. Um segundo que nos rouba o chão, que nos traz o desejo doloroso de ter tido mais um dia, mais um abraço, mais uma palavra sussurrada ao ouvido. Nessa altura, o que nos resta senão as tais coisas poéticas? Quando não há um corpo, quando não há vida, matéria, substância, persistem as recordações e a culpa por todos os minutos que perdemos a pensar nas contas, nos horários e nos jantares. Porque, por muitas voltas que a vida dê, por muitas obrigações que o mundo nos imponha, são as pessoas que nos dão sentido. Pessoas que merecem ouvir todos os dias o quanto são importantes na nossa vida. Todos os dias. Não apenas nos dias das grandes alegrias. Ou das grandes tragédias.





  • Dormir, ah dormir... Essa função básica do corpo humano que, como tudo na vida, só valorizamos quando não temos. Claro que qualquer pessoa sabe que, quando tem filhos, vai inevitavelmente dormir menos. Primeiro, porque o recém-nascido acorda de três em três horas, depois, porque deixou cair a chucha ou porque ficou doente ou porque teve pesadelos ou ainda porque fez xixi na cama. É normal, faz parte e não é segredo para ninguém, certo? Errado!
    Não é só nessas alturas que uma mãe (e muitas vezes um pai) não dorme. É constantemente, desde que a criança nasce até ao dia em que sai de casa. A verdade que ninguém nos conta é que, com a maternidade, nasce uma capacidade auditiva paranormal, que faz com que consigamos ouvir o nosso filho gemer mesmo a duas divisões de distância e com a porta do quarto fechada, e isso provoca graves perturbações no sono. Também nasce um sexto sentido, que nos acorda durante a noite para nos dizer que ele está todo destapado, está a começar a chocar alguma virose ou esqueceu-se de colocar o despertador para ir à visita de estudo cuja partida é às sete da manhã. E se nenhuma destas situações ocorrer e estivermos convencidas de que vamos dormir umas oito horinhas de seguida, os filhos arranjam maneira de, logo nesse raro dia, que geralmente ocorre durante o fim-de-semana, acordarem mais cedo.
    Assim, dormir uma noite realmente descansada começa a ser visto por uma mãe como um luxo arábico. Algo que um dia experimentámos, mas que agora não passa de uma ténue recordação. Como a recordação daquelas férias maravilhosas, por exemplo. Sabemos que elas aconteceram, temos fotografias que o atestam, lembramo-nos do sabor do Mojito, da música que estava a tocar, mas nada daquilo existe para lá da nossa memória. E é por isso que a maioria das mães (e muitos pais), quando conseguem recambiar a prole para casa dos avós, tios, amigos ou para um mero campo de férias, preferem dormir a qualquer outra actividade nocturna.
    Os amigos que não são pais ficam chocadíssimos com isto. Mas anda lá beber um copo, que estás sem os miúdos. Não sejas anti-social. Há quanto tempo não sais à noite? Também faz bem descontrair um bocado, dar um pezinho de dança... Esqueçam! Não há hesitação: entre ir para uma noitada com amigos e demorar três dias a recuperar (dois dos quais já na presença das nossas pequenas pestes hiperactivas) e poder dormir um sono retemperador pela primeira vez em meses, a escolha é óbvia. Aliás, já me aconteceu deixar o miúdo em casa dos avós para poder ir a um evento qualquer e, à última da hora, trocar a minissaia pelo pijama e enroscar-me no meu marido a ver um bom filme, seguido de 10 horinhas a dormir.
    E se for para ter uma noite de sexo escaldante? Também não. Acreditem: para uma mãe cansada, o prazer supremo é apenas e só uma cama fofinha num quarto silencioso, sem despertadores electrónicos ou humanos. Talvez amanhã, durante a sesta ou quando a criançada estiver naquela festa de anos. Até porque o sexo escaldante foi o que nos colocou neste estado, não foi?


    Bela Adormecida ©Filipa Silva
  • Português que se preze, deixa sempre os presentes para a última da hora. E depois entra em stress, no dia 23, ou mesmo no dia 24 de manhã, quando a família já está a telefonar a perguntar a que horas chega, que não se esqueça das couves, ou das rabanadas, ou das cadeiras dobráveis, que este ano o Chico traz a namorada.
    Pois desta vez não há desculpa. Têm aqui uma excelente lista com sugestões para todas as idades e todas as bolsas. E, ainda por cima, uma lista de produtos exclusivamente portugueses, que é para nos ajudarmos uns aos outros a sair desta interminável crise. A maioria deles são de pequenos negócios online, pelo que só têm mesmo de encomendar e ficar sentadinhos no sofá à espera do correio. Melhor que isto, só mesmo directamente com o Pai Natal, que eu sou apenas uma ajudante.
    • Uma clutch Baguera a partir de €110



    • Um bordado da Hardcore Fofo (esta tem bolinha!!! não ofereçam às avós!) - a partir de €10


    • Conservas (diz que está na moda!) à venda na típica Conserveira de Lisboa, mas também em muitos  supermercados e lojas gourmet por esse país fora. A partir de €2

    (para uma experiência ainda mais kitsch, visitem a loja de artesanato na minha avó, na Rua Miguel Bombarda nº94 Barreiro, onde encontram artesanato típico, galos de Barcelos, loiça das Caldas - bonecos também - canecas do Benfica, facas, utensílios de cozinha e tudo embrulhado no papel mais berrante com fitas e laços cada um de sua nação, tudo colocado em sacos de plástico sem qualquer tipo de branding, como antigamente!)


    • Discos e livros portugueses! Há tantas opções e tão boas (e não, não vou voltar a falar dos meus fantásticos livros!)... Vou apenas deixar um exemplo de um artista de quem gosto e que, tal como eu, anda a fazer tudo sozinho :)





         E e isto. Espero que tenham um Natal muito feliz e bem português. 

  • Descobri recentemente um projecto nacional realmente inspirador. Chama-se Maria Riding Company, nasceu oficialmente em 2012, e não é mais do que o restauro de motas clássicas. Mentira. É muito mais do que um restauro: é a transformação de uma mota clássica em algo totalmente novo, com um espírito vintage mas muito original. Por outras palavras, uma peça de arte.
    E como viajar também se faz fora da estrada, a Maria Riding Company criou aquelas que, para mim, são as pranchas mais bonitas do mundo. Aliás, são tão bonitas que estou mesmo a pensar abandonar o bodyboard só para poder ter uma.
    Depois ainda há os acessórios, as mochilas, as t-shirts, tudo com um look simplesmente fabuloso. Olhar para aquelas peças faz-nos pensar numa roadtrip de verão, pela costa leste dos Estados Unidos. Ou melhor ainda, pela nossa Costa Alentejana.
    Vale a pena espreitar o site, igualmente cuidado e aspiracional, e ficar a sonhar com a tal roadtrip, enquanto interiorizamos o espírito da marca:
    Extraordinary Rides for Unconventional People.